

Agô Notícias - Uma reflexão crítica sobre o estopim da Cracolândia e o muro da exclusão.
21/02/25, 15:30
Novo quadro, feito em parceria com Centro de Referência É de Lei, para pensarmos o direito a cidade e população em situação de rua.
Texto de Nubia Brito (Especialista em Direitos Humanos) e Mayara Cremonezzi (Especialista em Direitos Humanos e Direito da cidade), Advogadas do Núcleo Mobirìn Aiyê.

O estopim da Cracolândia em São Paulo não é recente, mas o resultado de décadas de negligência e escolhas políticas inadequadas. Na década de 1980, o crack começou a ganhar espaço no Brasil, tornando-se amplamente acessível entre populações em situação de vulnerabilidade social devido ao seu baixo custo. Paralelamente, no final dessa década e início dos anos 1990, a região central de São Paulo enfrentou um processo de degradação urbana.
A migração de empresas e comércios para áreas como a Avenida Paulista e bairros mais novos deixou o centro abandonado, o que abriu espaço para a ocupação por pessoas em situação de rua e usuários de crack, consolidando a área que hoje chamamos de Cracolândia.
Esse histórico de abandono urbano e social reflete a persistente falha do Estado em enfrentar a questão de maneira estrutural.
Em 2024, a construção de um muro na Cracolândia trouxe à tona mais uma vez a incapacidade governamental de lidar com problemas de saúde pública e de inclusão social. Trata-se de um símbolo visível da exclusão e invisibilização de populações vulneráveis, que há quase 40 anos convivem com políticas públicas insuficientes e ineficazes.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 dispõe, em seu artigo 6º, que "são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."
Já o artigo 182 estabelece que "a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes." Nesse contexto, a construção do muro na Cracolândia se mostra em desacordo com esses preceitos constitucionais, pois promove a exclusão e invisibilização de populações vulneráveis, em vez de protegê-las e incluí-las em políticas públicas que assegurem seus direitos fundamentais.
Evidenciando até mesmo a contrariedade com seu próprio plano diretor, utilizando uma abordagem que contraria os princípios estabelecidos no Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo. A Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014, que institui o PDE, orienta o desenvolvimento urbano com base na inclusão social e no direito à cidade. O artigo 1º, §1º, define a Política de Desenvolvimento Urbano como o conjunto de planos e ações que visam "ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e o uso socialmente justo e ecologicamente equilibrado e diversificado de seu território, de forma a assegurar o bem-estar e a qualidade de vida de seus habitantes"
A edificação de barreiras físicas, como o muro na Cracolândia, contraria os objetivos do PDE, que busca promover a inclusão e a justiça social no espaço urbano. Além disso, essa medida fere o conceito de direito à cidade, conforme discutido por Henri Lefebvre (2001), que defende o acesso equitativo aos espaços urbanos e a participação ativa dos cidadãos na transformação das cidades.
A exclusão física de populações vulneráveis por meio de barreiras físicas reforça a marginalização e impede a integração desses indivíduos na dinâmica urbana.
Além de ignorar os princípios do direito à cidade, o muro na Cracolândia viola direitos humanos fundamentais, como o acesso à saúde, ao saneamento básico e à assistência social.
A dependência química, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doença, exige tratamento e políticas de redução de danos, e não medidas de repressão ou isolamento. As condições enfrentadas por usuários de crack na Cracolândia, incluindo restrições a água potável e segurança, contrariam os preceitos do artigo 196 da Constituição Federal, que estabelece que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas”.
Além disso, o Estatuto da Cidade, em seu artigo 4º, inciso III, letra “e”, determina que a política urbana deve incluir medidas que promovam a recuperação de áreas degradadas e a inserção social das populações que nelas residem. A opção por um muro, em vez de políticas de inclusão, evidencia o descaso com as diretrizes legais e a ausência de compromisso com soluções sustentáveis e humanas.
A pesquisa de Magnani (2002) sobre territorialidades e pertencimento lança luz sobre um aspecto essencial da dinâmica urbana: mesmo em contextos de extrema vulnerabilidade, os indivíduos constroem relações significativas com o espaço que habitam. Essas territorialidades vão além da mera ocupação física; elas são formas de expressão cultural, identitária e social que conferem sentido e pertencimento ao território. Na Cracolândia, essas relações são evidentes nas redes de apoio mútuo, nas formas de organização comunitária e nas práticas cotidianas dos usuários e moradores da região, que desenvolvem estratégias de sobrevivência em meio ao abandono estatal.
A imposição de barreiras físicas, como o muro construído em 2024, desconsidera essas relações e trata o território como um espaço meramente funcional e desprovido de significados sociais. Essa abordagem não apenas ignora as complexidades das territorialidades construídas, mas também agrava a exclusão social ao romper os vínculos estabelecidos e empurrar ainda mais essas populações para a margem da sociedade. Além disso, tal medida pode ser interpretada como uma tentativa de apagar os traços de ocupação que tornam visíveis as falhas estruturais do Estado na promoção da inclusão social e no atendimento às demandas dessas comunidades.
Ao impedir a circulação e o uso do espaço urbano, o muro desrespeita o direito à cidade, conforme delineado por Henri Lefebvre (2001), que defende o acesso equitativo e participativo dos cidadãos ao espaço urbano. A exclusão promovida pela segregação física contradiz o conceito de cidade como um espaço democrático, onde todos os indivíduos, independentemente de sua condição social, possam exercer sua cidadania plena.
Além disso, as barreiras físicas reforçam o estigma e a marginalização das populações vulneráveis. Ao isolar essas pessoas, o muro simboliza a rejeição da sociedade e do poder público em reconhecer seus direitos e sua dignidade.
Esse cenário, em vez de oferecer soluções estruturais, perpetua um ciclo de exclusão que dificulta ainda mais a reintegração social e o acesso aos serviços essenciais, como saúde, moradia e assistência social. Portanto, ao se desconsiderar o aspecto relacional do espaço urbano, como apontado por Magnani (2002), medidas como a construção de muros evidenciam uma falha profunda nas políticas públicas.
O enfrentamento da vulnerabilidade social exige estratégias que levem em conta a complexidade das territorialidades e promovam a inclusão, ao invés de reforçar dinâmicas de exclusão e invisibilização. A construção do muro na Cracolândia não apenas contraria os preceitos do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, mas também viola a carta magna do país, a constituição federal, ferindo ainda os princípios fundamentais norteadores do direito à cidade e da inclusão social.
O que realmente necessitamos é uma abordagem centrada na humanidade, dignidade e respeito. Medidas como a implementação de programas de redução de danos, acesso ampliado a serviços de saúde mental, habitação social e iniciativas de geração de renda são passos essenciais para transformar essa realidade. O muro na Cracolândia não é apenas uma barreira física; é um marco da exclusão, um lembrete de que, enquanto as políticas públicas forem pautadas pela segregação, a sociedade continuará perpetuando as mesmas falhas de décadas atrás.
A solução para a Cracolândia não está na construção de muros, mas na construção de pontes. Pontes que conectem políticas sociais inclusivas e acessíveis àqueles que mais necessitam. Afinal, a dignidade humana não é um privilégio; é um direito inalienável.
Foto de Paulo Pinto - Agência Brasil