

A aplicação da Lei Maria da Penha a pessoas trans: reflexões necessárias
06/09/25, 11:30
Por Mayara Cremonezi @mayacremonezi | Coordenadora do Núcleo Mobiryn Aiyé
A Lei nº 11.340 de 2006, a chamada Lei Maria da Penha, consolidou-se como um dos principais instrumentos de enfrentamento à violência doméstica e familiar no Brasil. No entanto, sua aplicação a pessoas transexuais e travestis ainda encontra entraves.

A Lei nº 11.340/2006, a chamada Lei Maria da Penha, consolidou-se como um dos principais instrumentos de enfrentamento à violência doméstica e familiar no Brasil. No entanto, sua aplicação a pessoas transexuais e travestis ainda encontra entraves que evidenciam tanto a resistência do sistema jurídico brasileiro em incorporar plenamente uma perspectiva de gênero ampliada quanto a persistência de estruturas sociais e institucionais marcadas pela cisnormatividade e pela transfobia estrutural.
Embora o artigo 5º da lei estabeleça que a violência doméstica e familiar se configura a partir de qualquer ação ou omissão “baseada no gênero”, a prática jurídica muitas vezes reduz o conceito de gênero ao sexo biológico. Essa interpretação restritiva não apenas desconsidera avanços da teoria feminista e dos direitos humanos, mas também reproduz a exclusão de pessoas trans dos mecanismos de proteção estatais. Nesse sentido, a própria existência de debates judiciais sobre a aplicabilidade da lei a mulheres trans é reveladora de como o direito brasileiro insiste em hierarquizar vidas e legitimar desigualdades sob o manto da formalidade legal.
Apesar de avanços, como o precedente do Superior Tribunal de Justiça (HC 674.645/SC, 2021), que reconheceu a aplicabilidade da Lei Maria da Penha a uma mulher trans, ainda que não submetida à cirurgia de redesignação sexual, tais decisões são pontuais e não representam uma política uniforme. O caráter fragmentado da jurisprudência cria um cenário de insegurança jurídica e reforça a seletividade na aplicação da lei, em que a proteção depende, muitas vezes, da sensibilidade individual do julgador, e não de um compromisso institucional do Estado com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88) e a igualdade (art. 5º, caput, CF/88).
O problema não se limita à interpretação judicial. A ausência de políticas públicas consistentes voltadas para mulheres trans em situação de violência doméstica demonstra que o Estado brasileiro ainda não compreende a extensão da sua obrigação, prevista no artigo 226, §8º, da Constituição Federal, de criar mecanismos para coibir a violência nas relações familiares. Ao contrário, observa-se uma omissão deliberada, que reforça o ciclo de marginalização dessa população, já exposta a níveis alarmantes de violência, como apontam dados de organizações de direitos humanos que colocam o Brasil entre os países que mais matam pessoas trans no mundo.
É preciso questionar: até que ponto a aplicação da Lei Maria da Penha a pessoas trans tem sido um gesto de efetiva proteção, e não apenas um ato simbólico restrito a decisões isoladas? O risco é que o reconhecimento jurídico permaneça em um plano retórico, enquanto a realidade social segue marcada pela violência física, psicológica, patrimonial e institucional contra pessoas trans. A própria atuação de órgãos de segurança pública e do Judiciário, muitas vezes permeada por preconceitos, revela que o problema não se resolve apenas com interpretações judiciais progressistas, mas demanda uma mudança estrutural.
Portanto, a aplicação da Lei Maria da Penha a pessoas trans deve ser entendida não como uma concessão do sistema jurídico, mas como uma exigência constitucional e internacional. O Brasil, ao ratificar a Convenção de Belém do Pará (1994) e outros tratados de proteção aos direitos humanos, assumiu a obrigação de garantir mecanismos efetivos de combate à violência baseada em gênero, sem restrições cisnormativas. Recusar esse reconhecimento significa violar não apenas a Constituição, mas compromissos internacionais.
Em síntese, o desafio não está em discutir se a Lei Maria da Penha pode ou não ser aplicada a pessoas trans, isso já está respondido pelo texto constitucional e por tratados de direitos humanos. O verdadeiro problema está em enfrentar a estrutura excludente do sistema de justiça, que insiste em tratar pessoas trans como sujeitos de direitos de “segunda classe”. Uma aplicação crítica e inclusiva da Lei Maria da Penha é, portanto, não apenas um ato de justiça, mas uma forma de confrontar a violência institucional que sustenta a exclusão e a vulnerabilidade dessa população.
Referência
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
BRASIL. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará (1994). Disponível em: https://www.oas.org/juridico/portuguese/tratados/a-61.html.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). HC 674.645/SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 15/06/2021, DJe 21/06/2021. Reconhece a aplicação da Lei Maria da Penha a mulher trans. Disponível em: https://stj.jus.br.
ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Dossiê: Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais no Brasil – 2023. Disponível em: https://antrabrasil.org/.
TRANS MURDER MONITORING (TMM). Relatório global sobre assassinatos de pessoas trans. Disponível em: https://transrespect.org/en/.